Está chovendo novamente, o pensamento cruzou a mente de Fernanda. Levantou-se da
cadeira, que já estava sentada há horas. Pegou a bolsa, o guarda chuva, tudo
que sentia necessitar e, então, saiu. Caminhou em direção ao ponto de ônibus e
esperou. Colocou os fones de ouvido permitindo-se, enfim, ouvir alguma musica
que acalmasse seu aflito coração. Aqueles sentimentos estavam lhe ocorrendo
novamente. Tudo havia voltado a si, mais uma vez. Uma desolação que não sabia
bem de onde partia, mas sabia que doía. Doía tanto, que apenas ficar parada,
reclusa em casa, como estavam sendo seus dias, não faria aquela angústia
passar. - Droga! Um muxoxo, logo em seguida, lhe escapou. Aquela
sensação de chorar voltava. Mas, por quê? Não sabia, de fato. Nada em sua vida
parecia ter real sentido ou explicação.
Seu aguardado ônibus chegou. Juntou
as poucas forças que lhe restavam e embarcou em destino àquele lugar. Encostou
a cabeça na janela, o ônibus abafado pelas janelas fechadas. A chuva caia forte
do lado de fora e dentro de Fernanda, algo também apertava com força.
Permitiu-se soltar apenas uma lágrima. Ser vista chorando não era bem aceito,
sabia. Era um mundo perfeito, não era? Deveria ser aproveitado com muitos
sorrisos, mas não estava sendo assim para ela. O cenário mudava a cada parada.
Porém, nada mudava em seu interior. Crescer, não mudava seu interior.
Ainda estava ferida, era isso. Toda
mentira que dissera a si mesma, estava sendo desmanchada naquela chuva,
juntamente ao pouco de dignidade que lhe restava. Eu te amo, não eram
palavras simples de serem lembradas. Não quando seu coração doía tanto naquela
manhã de domingo. As pistas vazias, o ônibus silencioso. Tudo parecia conspirar
para o agravamento de sua solidão. Mas, gostava assim. Quanto mais doesse, quanto
mais lhe massacrasse e lhe deixasse no pó, mais aproveitava para se autotorturar. Era loucura, sabia. Vivera tanto tempo se alimentando de toda dor,
trazida por suas velhas feridas, que era simplesmente natural ter uma recaída
daquelas. Tudo começava com pensamentos trazidos pelo passado, mas ignorados
até o momento que a sufocasse a ponto de não aguentar mais. Era quando largava
tudo e corria com todas as forças para aquele lugar.
Última parada para Fernanda
significava a liberdade de tudo aquilo que vinha sentindo há dias. A chuva já
havia cessado, mas tudo continuava cinza. Sem brilho nos olhos, desceu. Não
estava certa se queria se livrar daquele sentimento, mas começou a caminhar. Os
olhos apreciavam àquela vista, tão calorosa do céu nublado. Todo o cenário era
bem apreciado. A relva, escorrendo pingos d'água, o rio correndo, o parque
vazio e o que mais lhe acalmava, o silêncio daquele lugar. Avistou seu banco
favorito e seguiu em direção à ele. Tudo estava em seu devido lugar, do jeito que
deixara. As flores em volta, a grama e aquelas palavras escritas, que nunca se
apagavam, nem mesmo dentro do seu coração. Passou lhes a mão e dentro de si,
pôde ouvi-las. Aquela voz suave cruzava novamente a sua mente. Era como um
castigo, mas ao mesmo tempo o remédio que curava aos poucos sua ferida
recém-aberta. Deixou-se encostar a cabeça nelas, para tentar se aproximar de
quem as escrevera e de quem mais sentia falta.
O ódio que sentia de si mesma, por
ceder ao desejo mais miserável que poderia ter, não conseguia atingi-la naquele
momento. Estava tão imersa naquele tratamento proibido, que era capaz de se
afogar em todas aquelas memórias. Vai ficar tudo bem, disse a si mesma,
tentando aliviar, mesmo que por um pouco, a dor que sentia no fundo do peito.
Minutos se passaram até voltar aos seus sentidos. Recompôs-se e passou a se
sentar. Com um olhar distante, foi surpreendida com outro olhar. Havia alguém a
observando de longe, fazendo-a corar. O rosto lhes era familiar, sentia. Aquela
pessoa estava em seu campo de visão, fitando-a se martirizar. Qualquer um
perceberia a dor no rosto, no toque ou no encostar de sua cabeça no banco da
praça. Não havia como negar.
Era engraçado, pois aquela pessoa
tinha um olhar pesaroso, assim como o seu. Não era um olhar de julgamento ou
crítica, como esperava. Mas sim, um olhar de cumplicidade, como se entendesse
sua dor. Aquilo meio que lhe acalentava e mesmo que por um pouco, a fazia
sentir-se menos miserável por estar ali. Desviou o olhar por um instante, pois
como uma flechada em sua mente, lembrou-se que já estiveram trocando olhares a
algum tempo. Mesmo a miopia forte não poderia lhe negar. Foi-lhes lançado um
meio sorriso, como se dissesse não estou aqui para julgar. Era uma afirmação
muda, uma conversa calada, que fazia aquela angustia evaporar aos poucos pelos
poros da carne flagelada. E aos poucos também, de pontinho em pontinho, enchia
seu coração de forças.
Era maravilhoso ter com quem
compartilhar aqueles sentimentos. Pela primeira vez, estava sendo compreendida
por alguém, sem ser antes julgada e condenada, não podendo nem mesmo se
defender. Martirizar-se não era a coisa mais sábia a se fazer, mas era também a
única coisa que conhecia para, paradoxalmente, aliviar sua dor. Viera de uma
infância sofrida, que sofrer mais um pouco não fazia tanta diferença assim.
Mas, era humana! Mesmo que não conseguisse compreender seus próprios
sentimentos, alguém entenderia, não é? E, finalmente, alguém demonstrava por si,
o que precisara sentir a tanto tempo: compaixão.
Aquele meio sorriso era uma espécie
de consolo. Mas, parando bem pra pensar, bem lá no fundo, aquilo estava virando
rotineiro. É verdade! Lembrou-se. Ele sempre estivera lá. Chegava sempre
tão desesperada, cega em aliviar-se de toda aquela loucura, que mal percebera o
rapaz que sempre a observava. Inconscientemente, aquela pessoa estava fazendo
parte do seu chamado kit de socorros, pois sempre estivera ali, onde
mais precisava. Aquela conexão que começou a sentir, após aquela percepção, era
incrível! Era como se sempre pudesse contar com aquela pessoa desconhecida. Ele
sempre poderia, de longe, lhe amparar em seus momentos mais miseráveis, pois já
fazia parte do lugar. Aquele banco, aquela praça, juntamente àquelas palavras,
não estavam mais só. Fernanda não estava mais só, pois havia alguém que a
compreendia. Que sempre estaria ali, exatamente quando mais precisasse.
Por um momento, encheu-se de
esperança. Agora teria alguma ajuda para conseguir superar toda aquela
angústia, que sempre vinha a se lamentar. Os arrependimentos ficaram consigo,
como cicatrizes, que não a deixavam superar. A verdade era, não conseguia
deixar nada passar. Tudo marcava, tudo ficava, mas apenas ela se martirizava
quando alguém partia ou não queriam mais em sua vida ficar. Sua recente esperança
começou a se ofuscar. Já fazia tanto tempo que não abria seu coração que
deveria, de fato, sobre tudo isso pensar. Precisava racionalizar. E se um dia
voltasse ali, para diminuir sua angústia incessante e ele não estivesse mais
lá? Como iria reagir? Não podia cegamente, novamente, se entregar. Não era tão
simples. Não desejava mais se magoar.
Mas e se ele também me espera chegar? As palavras cruzaram sua mente,
como uma percepção que ainda não havia chegado. Ele não deveria depender de si,
pensou. E então, sorriu, com uma tristeza no olhar. Como poderia ser tão
egoísta, a ponto de desejar depender de alguém e ao mesmo tempo, rejeitar a
dependência de outra pessoa sobre si? Tinha chegado ao fundo do poço, só podia.
Levantou o olhar novamente, só para se certificar da pessoa miserável que
estava se tornando e viu. Aquele sorriso caloroso estava lá. Uma coisa podia
admitir, com toda certeza. Não estava pronta, era isso. Não estava pronta pra
confiar, se entregar, deixar-se acalentar. A lembrança da dor enfraquecia todo
e qualquer esforço em busca da tão desejada liberdade. Estava presa, amordaçada
dentro de sua própria culpa.
O olhar perdido a fez ser pega de
surpresa novamente, quando seu inconsciente consolo, resolveu se levantar. Os
olhares ainda estavam atados, quando ele deu seu último riso de despedida. Tudo realmente se vai, disse para si
mesma. O coração apertado, pois era mais uma partida. Mais uma pessoa que ia
embora de sua vida, se momentaneamente ou para sempre, como o causador de todas
as suas recaídas. A verdade era que se culpava por tudo, até por coisas que
sabia não ter controle sobre. Culpava-se por terem se afastado. Culpava-se por
não ter apreciado mais sua presença na terra. Sangrava por não ter aceitado seu
amor quando lhe declarara. Chorava com a falta do seu porto seguro. E, por fim,
se martirizava por não ter estado lá em seus últimos momentos.
Sabia que não poderia, para sempre,
se prender naquele mundo imaginário. Mas, também, não era fácil amenizar o que
sentia. Anos haviam passado, mas tudo continuava lá, intocado. Sabia também que
as coisas boas sempre terminavam e quando terminassem, ela sempre estaria com
arrependimentos. Decidiu que já era tempo de partir. Levantou-se, já em direção
ao ponto de ônibus. Porém, uma curiosidade iminente lhe ocorreu. Algo quente pulsou
no seu sangue e soube, então, o que deveria fazer. Voltou os pés e caminhou na
direção oposta. Simplesmente, sentiu a necessidade de ir em direção ao banco do
seu inconsciente band-aid. O coração zunindo
nos ouvidos, o suor se esfriando e o nervosismo tomando conta de si. O medo de
ser pega em flagrante era real e não sabia o que poderia encontar ali.
Ao se aproximar, percebeu
que também era um banco cheio de escritas, como o seu. Atreveu-se a sentar-se
nele e passar a mão naquelas palavras que deveriam significar o mundo para
aquela pessoa, assim como as palavras escritas em seu banco significavam para
si. Eram notas datadas de muitos anos atrás. Aquela pessoa ia naquele mesmo
banco há mais tempo do que ela mesma, constatou. Era como se ele anotasse seu
próprio progresso em superar a dor que sentia. Sentiu-se um pouco
desconfortável por invadir a privacidade de outra pessoa, principalmente de
alguém que sempre esteve lá quando mais precisou.
Notou um desenho recente de uma nuvem
e umas palavras escritas dentro dela. Era, na verdade, o último espaço para
escrita que havia naquele banco. Permitiu-se lê-las e as leu com seu coração. Uma
lágrima lhe escapou, mas levantou-se com obstinação, segurando sua bolsa com
força e sorriu. Sentiu que aquele estranho não voltaria mais ali e então, uma
determinação, já esquecida, passou por todo o seu corpo, causando-lhes um
arrepio satisfatório.
Aquilo tudo voltaria algum momento,
admitia. Porém, agora seria forte, realmente seria. Não por alguém ou para
alguém, como acreditava que deveria ser. Aquele posto era apenas seu e só seu.
Mas sabia que band-aids não poderiam
para sempre cobrir suas feridas. Sentiu, enfim, todas elas expostas ao vento,
pois apenas assim se curariam. As palavras lidas a pouco, agora reprisavam e
fixavam-se em sua mente e uma vontade imensa de gritar se alastrava dentro de
Fernanda. A última coisa que queria lembrar-se daquele lugar era que tudo isso vai passar, pois quando se levantar, irá abrir suas asas e voar. Voe bem alto e, então, irá se libertar.